terça-feira, 17 de julho de 2007

Tempo


O brilho da lua cheia que se destacava no céu estrelado daquela noite tocava-lhe delicadamente os seios nus, indispensáveis na criação daquela imagem de modelo feminino que se fazia despercebidamente com as pernas entrelaçadas no lençol fino que, de certa forma, faziam música com o suave sereno que entrava pela janela do quarto.
Deitada na cama nem imaginava sua contradição: a sensualidade de uma mulher e a inocência de uma menina. Como o tempo a tornou uma mulher sem sua consciência? Sozinha ela pensava, se recordava de como a vida era simples quando ainda era uma criança, de como era bom ter a preocupação do dever de casa. Agora é uma mulher. Uma mulher com deveres, obrigações e preocupações incomparáveis com as de uma criança.
Ficou pensando de como o tempo passou, ela mudou e, no entanto, todo esse processo natural jamais foi percebido por ela. Um processo que, ao ser mais do que natural, não percebemos quando acontece conosco. Até ontem era apenas aquela pequena menina que se despedia da mãe para ir ao colégio. Hoje é aquela mulher que se despede de tudo para ir embora de casa e seguir sua própria vida longe de tudo que a cercava até então.
Como pode tantas coisas acontecerem de forma tão rápida? As lembranças de sua infância a incomoda, lhe devolve aquele sentimento de nostalgia, aquela tristeza profunda que traz consigo uma vontade de voltar no tempo e viver tudo aquilo que já havia vivido.
Tudo era tão mais fácil quando não se tinha idéia real do mundo, quando se era, inocentemente, ignorante. O mundo no qual ela vive hoje não há inocência, não há bondade, não há humor. É apenas o cenário de uma agressiva solidão que nos transforma em seres exageradamente pensantes, de forma que, ao entrar, jamais iremos sair.
Sem escolhas, nos tornamos seres ocos, que mantêm sua aparência externa ao mesmo tempo que não possui nenhuma estrutura interna. E ela ali, com a força e determinação de uma mulher e a fragilidade de uma menina.


Seiscentos e Sessenta e Seis

A vida é uns deveres que trouxemos para fazr em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ª feira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
segui sempre, sempre em frente...
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

(Mário Quintana)

domingo, 1 de julho de 2007

Lição desconhecida


Ainda me lembro quando o alaranjado fundia-se ao vermelho enegrecido daquela tarde melancólica de inverno. Dava a impressão de estar cansada demais para quem aparentava ter 17 anos. O vento gelado que tocava-lhe a face a fazia franzir o rosto preocupado e escondido por trás dos livros que carregava. Não eram poucos.
Caminhava devagar, parecia pensar muito enquanto seus delicados pés se moviam para frente. E eu apenas ali, observando como quem a admirava há algum tempo. Como se a conhecesse.
Ao longo de seu percurso se deparou com muitas lojas, mas uma em especial conseguiu prender sua atenção durante alguns minutos. Minutos esses que, para ela, pareciam ser preciosos. Mais do que preciosos, pareciam raros.
Sua atenção foi inteiramente tomada por "flashs" de imagens que eram transmitidos por inúmeras televisões na vitrine.
Ficou parada olhando, admirando aquelas imagens como eu a admirava e tentava compreender aquelas expressões pensativas.
Eram muitas televiões, muitas imagens, muitas histórias numa só vitrine... Seu olhar, no entanto, estava preso a algum fato que eu não compreendia, mas queria entender. Seus olhos se fixaram em apenas um canal, e tal escolha a privava de muitas outras. Não poderia prestar atenção em várias tv's, apenas em uma. Sua escolha era decisiva. Apenas uma tv, um canal, uma única história. Jamais saberia o que passava nos outros canais. Ficou ainda algum tempo ali concentrada na imagem da vitrine, aquela imagem que parecia fascinante frente aos seus lindos olhos castanhos.
De repente pareceu voltar aos seus pensamentos iniciais. Talvez a preocupação com os livros, ou não, talvez o simples fato de ter se dado conta que o céu já estava escuro fez ela voltar seus pensamentos para o mundo solitário que a envolvia. Sim solitário, apenas ela e os livros, companheiros inseparáveis... Para onde ia? Para onde queria ir? As dúvidas afloravam minha mente e me impulsionavam em sua direção, mas não tive coragem de atrapalhá-la. Deixei que fosse com seus pequenos passinhos que faziam de meu mundo um outro mundo, um mundo cercado de dúvidas, sonhos? Nunca tracei metas, mas é como se já as tivesse traçado.
Apenas uma tarde de inverno, algums minutos de uma vida mudada por passos e expressões de uma desconhecida que parecia ter muita determinação naquilo que havia planejado para sua vida. Determinação essa que me fez rever completamente aquilo que eu havia feito da minha vida até tal momento.
Virou a esquina e sumiu no horizonte com aqueles mesmos passos delicados com que chegou. E eu fiquei ali parado, não mais admirando, mas relembrando da inesquecível expressão de sabedoria de uma jovem que parecia saber muito bem do que queria para sua vida, do que havia planejado para si. Me lembrei então de algo que traduzia exatamente o momento: "De tempos em tempos, o Céu nos envia alguém que não é apenas humano, mas também divino, de modo que, através de seu espírito e da superioridade de sua inteligência, possamos atingir o Céu".
Alcancei o Céu e, com ele, a coragem de continuar.